REVISTA VEJA
Segunda-feira, 26 de Setembro de 2011.
A FESTA DOS BODES
No momento em que as manifestações de combate à corrupção ganham as ruas, uma polêmica livra a família Sarney de um processo espinhoso. A impunidade no Brasil tem raízes históricas. A promiscuidade entre política e Justiça está entre as principais causas
Dá-se como regra que em Brasília os assuntos mais candentes não são resolvidos nos gabinetes e nos plenários, mas em restaurantes, quartos de hotel e festas particulares. Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do país, transformou em pó a mais extensa investigação já feita sobre a família do presidente do Senado, José Sarney. Realizada entre 2007 e 2010, a operação mapeou os negócios do clã maranhense nas abas do poder público, flagrou remessas milionárias para o exterior, além de dinheiro do contribuinte indo parar em contas de empresas controladas, segundo a polícia, por "laranjas" do primogênito do senador, o empresário Fernando Sarney. Transações quase sempre sustentadas por verbas de órgãos historicamente comandados por apadrinhados do superpoderoso parlamentar, como as estatais do setor elétrico. De tão complexo, o caso se desdobrou em cinco inquéritos. Três deles estavam prestes a se transformar em processos judiciais. Antes que isso acontecesse, porém, veio a decisão do STJ.
Uma das turmas do tribunal considerou que juízes de primeira instância não poderiam ter autorizado a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico de Fernando Sarney e de outros investigados apenas com base em informações do Coaf, o órgão governamental encarregado de monitorar operações financeiras suspeitas. Foi uma transação de 2 milhões de reais, realizada no fim do ano eleitoral de 2006 e mapeada pelo Coaf, que serviu como ponto de partida para a investigação. Incumbidos da operação, Polícia Federal e Ministério Público discordam, obviamente, da decisão. Advogados criminalistas, claro, festejam. Independente de qual lado está com a razão, o fato é que o veredicto do STJ dá força à sensação de que os poderosos e aqueles que orbitam em seu redor nunca experimentam a força da lei no Brasil. É mais um elemento a confirmar a fama de paraíso da impunidade. Fama danosa ao país, mas que garante uma vida tranquila a figuras de proa da República às voltas com denúncias graves. Gente como os notórios Paulo Maluf, Luiz Estevão, Jader Barbalho e Renan Calheiros, beneficiados por um caldo cultural que tem como ingredientes a promiscuidade entre agentes públicos e empresários, a falta de apetite das instituições para punir certas castas e a letargia da população diante de malfeitos.
Para entender as razões que protegem políticos e corruptores do acerto de contas com a Justiça, é preciso retroceder ao descobrimento. Diz o professor e doutor em história Ronald Raminelli, da Universidade Federal Fluminense: "A impunidade é uma prática que veio para cá com os portugueses. Na Europa daquele período, os nobres e poderosos tinham privilégios e não eram submetidos às mesmas leis dos homens comuns. A diferença é que os europeus foram se livrando dessa tradição ao longo do tempo, mas aqui ela perdura até hoje". Na gênese dessa prática está a necessidade de autopreservação da elite política - comportamento que se cristaliza, por exemplo, nas absolvições de parlamentares criminosos e na dificuldade do Congresso em aprovar leis saneadoras na seara ética. "Para os poderosos, até hoje fica a interpretação da lei da melhor maneira possível. Há uma rede de proteção em que as leis são sempre interpretadas de acordo com os interesses dos grupos dominantes", prossegue Raminelli.
A Justiça é uma engrenagem indissociável desse processo. O problema começa na forma como são preenchidas as vagas nos tribunais superiores. Os ministros são escolhidos pelo presidente da República. Antes de assumirem, têm de ser sabatinados e aprovados pelo Senado. "O processo de escolha é uma verdadeira simbiose entre Legislativo. Executivo e Judiciário e foi levado a um ponto intragável, em que há sempre a perspectiva, por parte dos magistrados. de agradar aos políticos de plantão, que podem ajudá-los a galgar postos mais altos na Justiça", afirma o procurador Alexandre Camanho, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. "Virou uma grande bancada de compadres, onde todos se protegem, se frequentam, e quem quiser ter vaga no STJ ou no STF tem de usufruir de proximidade e prestígio com os políticos." Com mais de cinquenta anos de vida pública, ex-presidente da República e pela quarta vez no comando do Senado, ao qual cabe realizar as sabatinas, Sarney construiu uma rede de relações e de influência sem precedentes - com ramificações em todos os poderes, principalmente no Judiciário.
Relator do caso que resultou no arquivamento do processo que investigou a família Sarney, o ministro Sebastião Reis Júnior foi empossado em junho passado no STJ. Um de seus amigos diletos é o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro. Kakay, como o advogado é conhecido em Brasília, também é amigo de Sarney e defensor do clã maranhense há tempos. Essa relação de proximidade entre os três teve alguma coisa a ver com a decisão da semana passada? Certamente não. Mas relações assim fomentam determinadas lendas. "O Sebastião é meu amigo há muito tempo, mas não atuei nesse caso, não conheço os detalhes do processo nem sabia que ele era o relator". diz Kakay. Em fevereiro, o advogado organizou uma feijoada na mansão em que mora, em Brasília, que reuniu ministros. senadores e advogados famosos. Sebastião Reis era um dos convidados. Na ocasião, apesar de ainda ser aspirante à vaga no STJ. já. era paparicado como "ministro" por alguns convivas. O ministro do Supremo Tribunal Federal José Dias Toffoli também participou da feijoada. que varou a madrugada. Ah. as festas e os quartos de hotel em Brasília.
No dia 17 passado, um sábado, Toffoli, Kakay e representantes de famosas bancas de advogados de Brasília voltaram a se encontrar em uma festa, em Araxá, Minas Gerais, no casamento de um dos filhos do ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence. O aeroporto da cidade não via um movimento assim tão imenso fazia muito tempo. Os convidados mais famosos chegaram a bordo de aviões particulares, inclusive o ministro Dias Toffoli. Em nota, ele explicou que o avião lhe fora cedido pela Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, onde dá aulas. Naquele dia, por coincidência, o ministro, que estava junto de sua companheira, informou que tinha um compromisso de trabalho no campus que a instituição mantém em Araxá.
Sepúlveda Pertence é o presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência - uma espécie de vigilante e fiscal do comportamento das autoridades do Executivo. Além de Kakay e Toffoli, ele recebeu como convidados o ex-senador Luiz Estevão (condenado a 31 anos de prisão e que deposita suas últimas esperanças em se safar da cadeia nos recursos que serão julgados no STJ e no Supremo) e o empresário Mauro Dutra (processado por desvio de dinheiro público) - e advogados que defendem ou já defenderam ambos. Toffoli é relator de um dos processos de Luiz Estevão no Supremo. Os quartos do hotel mais luxuoso da cidade foram ocupados, portanto, por juízes, réus e advogados que atuam em processos comuns. A feijoada de Brasília terminou na madrugada do dia seguinte, com um inofensivo karaokê. A festa de Araxá também avançou a madrugada, embalada por música eletrônica. Havia, porém, uma surpresa guardada para o final. Depois das 3 da manhã, as bandejas dos garçons passaram a circular com frascos de lança-perfume uma droga ilegal, que pode levar à prisão de quem a distribui. Quem a consome, se flagrado, também tem de se explicar à Justiça. ""Teve gente que passou mal no banheiro, mas foi tudo de boa", conta um dos convidados. Àquela hora, rezemos, os guardiães das leis, incluindo os anfitriões, já haviam se recolhido aos seus aposentos. Não teriam testemunhado, assim, o que pelas leis vigentes no país ainda é considerado crime. No dia seguinte, os jatinhos estacionados no aeroporto decolaram em direção a Brasília. Na segunda-feira, quando começa a semana de trabalho, os convivas passam a chamar-se de excelências. Voltam a ser juízes, advogados e réus. Só na aparência, infelizmente.
Por Daniel Pereira e Rodrigo Rangel
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