O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução que autoriza a imposição de uma zona de exclusão aérea em território líbio, salvo os vôos de natureza humanitária e inclui “todas as medidas que sejam necessárias” para a proteção da população civil, excluindo, porém, a ocupação militar de qualquer porção da Líbia.
Além disso, endurece o embargo de armas à Líbia e reforça as sanções impostas no mês passado a Kadafi e seu círculo mais próximo de colaboradores.
Paris e Londres encabeçaram a arremetida contra a Líbia numa corrida contra o relógio, a fim de que a ONU se pronunciasse antes que o último reduto rebelde, Bengazi, fosse recuperado pelas forças leais a Kadafi.
O documento recebeu a aprovação de 10 países – Grã Bretanha, França, Estados Unidos, Líbano, Colômbia, Nigéria, Portugal, Bósnia e Herzegovina, África do Sul e Gabão -, nenhum voto contra e cinco abstenções – Brasil, Rússia, China, Índia e Alemanha.
A Rússia exigiu a inclusão de um cessar-fogo imediato e a China insistiu numa solução pacífica da crise, ao reiterar suas sérias reservas quanto à zona de exclusão aérea, ao mesmo tempo em que rechaçava o uso da força nas relações internacionais. Estranhamente, Moscou e Pequim, que detêm poder de veto, não o utilizaram para barrar aspectos da resolução com os quais não concordavam.
Diferentemente da Tunísia e do Egito, quando massas de centenas de milhares, desarmadas, saíram às ruas erguendo as bandeiras de pão, emprego, justiça social, progresso, liberdade e democracia, derrubando por força de seus protestos e pressão os ditadores apoiados pelas potências ocidentais, Ben Ali e Mubarak, na Líbia facções armadas com armamento blindado, artilharia antiaérea, armas individuais modernas e até alguma força aérea ocuparam o leste do país e algumas cidades do oeste, determinadas a tomar Trípoli e acabar com o ditador Muamar Kadafi. Estabeleceu-se com isto uma franca guerra civil.
Quando, no curso dos combates, as tropas fiéis a Kadafi avançaram sobre os bastiões rebeldes, o chamado Conselho Nacional Líbio de Transição passou a reclamar com insistência o apoio do Ocidente em armas e logística e a exclusão aérea. Ou bem os oposicionistas contavam desde o início com o respaldo dos países hegemônicos e estes estavam roendo a corda ou calcularam mal a capacidade de resistência de Kadafi e o apoio de grande parte da população líbia com que conta.
A verdade é que a insurgência armada no leste da Libia é apoiada diretamente por potências estrangeiras. A insurreição em Bengazi ergueu imediatamente a bandeira vermelha, negra e verde com a meia lua e a estrela, a bandeira da monarquía do rei Idris, que simbolizava o domínio dos antigos poderes coloniais.
A imensa campanha de distorções, omissões e mentiras desencadeada pelos meios maciços de comunicação abriu espaço para uma enorme confusão no seio da opinião pública mundial. Levará tempo antes que se possa estabelecer a verdade do que ocorreu na Líbia e distinguir os fatos reais das falsidades publicadas.
Alguns fatos concretos, porém, merecem atenção. A Líbia ocupa o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da África e tem a mais alta esperança de vida do continente. A educação e a saúde recebem especial atenção do Estado.
O PIB per capita é de 13,8 mil dólares, o crescimento em 2010 foi de 10,6%, a inflação de 4,5%, a pobreza de 7,4% e a colocação no IDH é 53º (Brasil é 73º). Todos esses índices melhores que o do nosso país. Seus problemas são de outra natureza. De alimentos e serviços sociais básicos o país não carecia.
Nação de pequena população – 6,5 milhões de habitantes - necessitava de força de trabalho estrangeira em boa proporção para levar a termo ambiciosos planos de produção e desenvolvimento social.
Milhares de trabalhadores chineses, egípcios tunisianos, sudaneses e de outras nacionalidades labutam em solo líbio. Dispunha de vultosos ingressos, provenientes da venda de petróleo de alta qualidade, e de grandes reservas em divisas depositadas em bancos das potências européias e Estados Unidos, e com isso podiam adquirir bens de consumo e até armamento sofisticado, fornecido exatamente pelos mesmos países que invadiram-no em nome dos direitos humanos.
O tirano, que durante quase três décadas foi considerado o “cachorro louco”, o “inimigo número um” do Ocidente, para logo converter-se no vistoso aliado de seus inimigos de agora, voltou ao seu estatuto original.
Ao se aproximar das potências ocidentais, Kadafi cumpriu rigorosamente suas promessas de desarmamento e ambições nucleares. Com isso, a partir de outubro de 2002, iniciou-se uma maratona de visitas a Trípoli: Berlusconi, em outubro de 2002; Aznar, em setembro de 2003; Berlusconi de novo em fevereiro, agosto e outubro de 2004; Blair, em março de 2004; Schröeder, em outubro de 2004; Chirac, em novembro de 2004. Todos exultantes, garantindo o recebimento de petróleo e a exportação de bens e serviços.
Kadafi, de seu lado, percorreu triunfante a Europa. Recebido em Bruxelas em abril de 2004 por Prodi, presidente da União Europeia; em agosto de 2004 convidou Bush a visitar seu país; Exxon Mobil, Chevron Texaco e Conoco Philips realizavam os últimos acertos para exploração do óleo por meio de ‘joint ventures’. Em maio de 2006, os Estados Unidos anunciaram a retirada da Líbia dos países terroristas e o estabelecimento de relações diplomáticas.
Em 2006 e 2007, a França e os Estados Unidos subscreveram acordos de cooperação nuclear para fins pacíficos; em maio de 2007, Blair voltou a visitar Kadafi. A British Petroleum assinou um contrato "extremamente importante" para a exploração de jazidas de gás.
Em dezembro de 2007, Kadafi empreendeu duas visitas a França e firmou contratos de equipamentos militares de 10 bilhões de euros. Contratos milionários foram subscritos com importantes países membros da OTAN.
Dentre as companhias petrolíferas estrangeiras que operavam antes da insurreição na Líbia incluem-se a Total da França, a ENI da Itália, a China National Petroleum Corp (CNPC), British Petroleum, o consórcio espanhol REPSOL, ExxonMobil, Chevron, Occidental Petroleum, Hess, Conoco Phillips.
O que se passa para que o “cachorro louco”, que se transformara em grande amigo, volte a ser o “cachorro louco”? De um lado, a evidência de que as potências hegemônicas tudo farão para não perder o controle dessa vital fonte de energia. De outro, fatores geo-estratégicos.
Diante da revolta por mudanças democráticas dos países árabes do Norte da África e do Oriente Médio, é fundamental, no caso da Líbia, ter um governo absolutamente confiável, pressionando o vizinho oriental Egito para manter o tratado com Israel e não partir para políticas que desarrumem todo o contexto regional.
Entrementes, as agências de notícias informam que no Bahrein, ocupado por tropas da Arábia Saudita, com prévio conhecimento e anuência de Washington, e debaixo de lei marcial, milhares de pessoas desarmadas são reprimidas violentamente por forças militares que destruíram o monumento da praça Pérola, ponto de encontro de manifestantes.
Sabe-se que a V Frota norte-americana está estacionada neste país, distante 25 quilômetros da Arábia Saudita, e funciona como posto de vigilância dos vastos poços de petróleo do Golfo Pérsico.
Gravíssima é a situação no Iêmen, aliado incondicional da Arábia Saudita e dos Estados Unidos. Dezenas de civis, desarmados, foram assassinados nos últimos dias. Nem a França nem a Grã Bretanha, tampouco Washington ou a Liga Árabe propuseram “todas as medidas necessárias” para proteger a população civil.
Obama, Sarkozy e Cameron não falaram grosso com o Bahrein e Iêmen. A ONU não autorizou uma zona de exclusão aérea contra o Iêmen e Bahrein, nem acha que os direitos humanos de bareinitas e iemenitas mereçam ser respeitados. Nesse caso, só falatório, hipocrisia e dupla moral.
Toda e qualquer intervenção na Líbia terá repercussões graves. Cabe ao povo líbio, e apenas a ele, resolver o problema líbio. A comunidade internacional deve manifestar solidariedade e agir unida para conter a guerra civil e facilitar uma via de transição pacífica para o conflito líbio.
Os governos ocidentais, no afã de manter o seu domínio, usam diferentes padrões de avaliação, caso a caso, conforme o país e ao não reconhecer os levantes populares são atropelados pelo curso da História. Os regimes árabes despóticos, fundamentalistas e absolutistas têm de saber que não podem resistir às mudanças. É simples questão de tempo. E todos os que resistirem serão varridos do mapa político.
Setores de esquerda vêm dando interpretações disparatadas sobre os acontecimentos. A mais esdrúxula reside em que desqualificar a revolta das massas populares líbias porque o regime é inimigo aparente de nosso inimigo não é um critério muito saudável. Analistas de esquerda não podem fechar os olhos à realidade do mundo de hoje, desconhecer as forças em confronto e seus objetivos estratégicos, deixar-se levar pelas informações da mídia que tem um claro viés em favor dos interesses neo-coloniais e imperialistas.
Uma intervenção militar aberta implica que os Estados Unidos, Inglaterra, França e demais países optaram por um dos lados da guerra civil líbia, como aumentará brutalmente os riscos sobre a população civil que, cinicamente, anunciam que pretendem proteger.
*Max Altman é jornalista e advogado.
Texto editado por Hugo Freitas