domingo, 23 de junho de 2013

O PODER DAS RUAS E A CRISE DA REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA

Mais de um milhão de pessoas protestam nas ruas do Rio de Janeiro, no histórico dia 17 de junho de 2013

Por Hugo Freitas
Historiador e Sociólogo

Os acontecimentos convulsivos dos últimos dias, pipocados em boa parte das cidades brasileiras, incluindo-se as 26 capitais e o Distrito Federal, certamente irrompem na histórica política do país como um dos mais contumazes movimentos de mobilização popular dos últimos tempos.

A força dos protestos que tomou as ruas de São Paulo contra o aumento das tarifas do transporte coletivo se espraiou para todo o Brasil após a PM paulista demonstrar através das bombas de efeito “imoral”, dos gases fatais lacrimogêneos e das balas de borracha que sangraram os jovens manifestantes o despreparo e a intolerância com que as forças armadas nacionais enfrentam situações de “desordem pública” contra pessoas desarmadas, que têm apenas nas vozes e nos cartazes o poder simbólico para reivindicar melhorias e demonstrar sua insatisfação perante os governos (municipais, estaduais e federal).

Se o Movimento Passe Livre (MPL) deu o start para se discutir a questão dos aumentos abusivos sobre os péssimos serviços de transporte público em São Paulo, a mídia tradicional e a polícia getulista paulista, contraditoriamente, insuflaram nas mentes e corações da juventude brasileira, espalhadas pelas cinco regiões do país, o combustível necessário para se aglutinar em torno de uma agenda comum a insatisfação geral da população: melhorias na saúde, educação, gastos públicos com grandes eventos esportivos (Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas), corrupção, e outras mais específicas, como o movimento contra a PEC 37, que limita os poderes de investigação do Ministério Público, além de um longo etc.

Inicialmente, a mídia tradicional, vinculada aos grandes conglomerados comunicacionais, aos empresários e à classe política dominante, interpretou o movimento das ruas paulistas como ações de “vândalos” e “baderneiros” que “choravam” por causa de míseros vinte centavos de aumento nas passagens, noticiando e defendendo, disfarçadamente, a ação truculenta da polícia, numa ode à manutenção da ordem. Não concebia, até então, o alcance de tal estratégia noticiosa, que gerou efeitos não postulados aprioristicamente.

Posteriormente, quando a mobilização popular saltou de 5 mil do dia 13 de junho para mais de 100 mil pessoas, no já histórico 17 de junho, a mesma imprensa aliançada e patrocinada pelo grande capital traduziu o poder das ruas como ato cívico e exemplo de participação democrática.

Foi uma tentativa desesperada de não cair ainda mais no descrédito popular (pelo menos entre a “nova” classe média brasileira, sufocada com a alta carga tributária que lhe pesa sobre os ombros, e o universo libertário das universidades) e de tentar surfar na onda do ibope advindo dos protestos, que agora tinham dimensões de "levante nacional".

Curioso é observar que o único fator homogeneizador dos manifestantes era o uso indiscriminado das redes sociais como elemento de convocação e agendamento dos protestos, já que as pautas e as contestações eram múltiplas e variadas.

Os mesmos jovens que, até bem pouco tempo, eram apontados por muitos teóricos como uma geração desinteressada da política, uma plateia que se interessava apenas pelas novidades tecnológicas e que passava horas e horas nas redes sociais, demonstrando pouco interesse pelos rumos do país.

Talvez, isso justifique a análise entusiasmada e até mesmo apressada de muitos que devotaram algum esforço intelectual para interpretar e comparar essa mobilização brasileira com a chamada “Primavera Árabe”, movimento que teve ampla utilização da internet para divulgação e conclamação de passeatas e protestos em diversos países árabes. Porém, as semelhanças param por aqui.

Nada mais estapafúrdio e talhado com arroubos de intelectualidade comparar o Brasil aos países do outro lado do Atlântico, uma vez que tais teorizações traduzem o fenômeno social brasileiro com as mesmas tintas que pincelaram a queda de “ditadores” ou “ditaduras” no Oriente Médio, fato que não ocorre por estas bandas desde a reabertura política e o fim da Ditadura Militar (1985).

Isso revela também certa letargia dos intelectuais brasileiros em pensar e explicar o momento político do país contemplando suas próprias especificidades, sem a necessidade de comparações com situações exógenas.

Se for para traçar paralelos dos dias atuais com os de outrora, a história do Brasil é pródiga em nos oferecer exemplos prenhes de elementos que permitam traduções mais frutíferas. Mobilizações no país não são novidade. Até um presidente, eleito pelas vias legais, foi deposto após uma grande mobilização popular, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que ajudou a derrubar Jango e a conduzir os militares golpistas de 1964 ao poder.


Depois da experiência do Estado de exceção, que durante 21 longos anos regeu as rédeas da política brasileira, tomadas de assalto pelas forças das classes conservadoras burguesas, setores da Igreja Católica, do empresariado e dos industriais brasileiros, além do capital estrangeiro, o Brasil foi às ruas pedir as “Diretas Já” e o “Impeachment de Collor”.

Mas em ambos os movimentos, o povo serviu apenas como mera massa de manobra, tendo nos partidos políticos e nas classes elitistas do país o protagonismo das ações políticas de então.

O que se vê, nos dias atuais, é justamente a negação dos partidos políticos, ou melhor, a tentativa de impedi-los de participar das mobilizações e dos protestos, exemplificado na queima de bandeiras do PSTU, do PSOL, do PCO, e até mesmo do PT, taxados pela grande massa de “oportunistas”.

A ação dos manifestantes de hoje coloca em xeque a representatividade política do país. A alegação geral é que os partidos “não os representam”, pois estas instituições estariam impregnadas da lógica do “poder pelo poder”, da mera disputa por cargos políticos, ainda fiéis depositários da lógica da "República Velha", representante das antigas alianças com as classes dominantes das urbes e com os grandes latifundiários do campo, constituindo-se, portanto, em “partidos de mentirinha”, como bem salientou o presidente do STF, Joaquim Barbosa, expressando o abismo existente entre os partidos e os anseios populares.

De fato, ficou provado que o poder das ruas pode produzir efeitos imediatos, sem a necessidade de mediadores ou representantes eleitos. As tarifas do transporte público em diversas cidades baixaram. Em São Paulo, as passagens recuaram para os R$ 3,00 de onde haviam saltado. O prefeito Fernando Haddad, que nos primeiros dias dos protestos havia sido implacável na determinação de manter as passagens em R$ 3,20, foi obrigado a recuar e a estabelecer canais de diálogo com os líderes das manifestações.

Até a presidente Dilma Rousseff se viu obrigada a fazer um pronunciamento à nação, em rádio e TV, para dar um posicionamento do governo federal sobre as reivindicações vindas das ruas.

Mas no país do futebol, que respira o ar inebriante da Copa do Mundo e das Olimpíadas, o efeito anestésico que o esporte propicia não teve o vigor necessário para ludibriar mais uma vez a população. O povo brasileiro foi às ruas, até em dias de jogo da seleção nesta Copa das Confederações, para protestar e cobrar políticas públicas mais eficazes, para criticar os gastos do governo com os eventos e para exigir saúde e educação nos mesmos padrões cobrados pela FIFA para a construção dos estádios.


O protagonismo das ruas é a prova mais consistente de que política não se faz somente de quatro em quatro anos; que o voto não é o único instrumento de decisão política; e que os partidos políticos, principalmente os maiores e mais consolidados (como PT, PMDB e PSDB), não são o caminho solitário para o desaguamento da insatisfação do povo. Aliás, se aponta mesmo para um processo de reflexão e de readaptação dos partidos às novas demandas sociais.

Se foi possível derrubar tarifas e forçar um posicionamento da presidente sobre as reivindicações pleiteadas apenas com a voz e o poder da manifestação popular, é sinal de que a máxima contida no filme “V de Vingança”, popularizado nas máscaras de Guy Fawkes espalhadas país afora nos rostos dos milhares de jovens seduzidos pela película hollywoodiana, tem lá o seu valor: “O povo jamais deve temer seu governo, e sim, o governo é que deve temer o seu povo”.

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