Foto: André Dusek/Estadão
Depois de um sábado inteiro dedicado à
leitura acadêmica e à apreciação de dois documentários sobre o período da Ditadura
Militar no Brasil (1964-1985), o que me levou a tomar a decisão de
"evitar", ao menos por um dia, o uso do computador e da internet e,
consequentemente, de atualizar este espaço comunicacional, trago para conhecimento do público
leitor uma entrevista do senador José Sarney (PMDB/AP), concedida à
jornalista Laura Greenhalgh, publicada na edição do dia 28 de março do jornal "O Estado de São Paulo".
Sarney fala dos bastidores que
antecederam o Golpe de 1964, de sua relação com o governo dos militares, das
disputas políticas internas durante o regime de exceção, do processo de
redemocratização do país, das circunstâncias em que assumiu a Presidência da
República quando da morte de Tancredo Neves, dentre outros assuntos da esfera
política nacional que, por seu conteúdo, pela idade do ex-presidente (83 anos)
e pela rememoração dos 50 anos do Golpe, credencia esta entrevista como
"histórica", passível de ser corroborada com outras fontes que ajudam
a contar um pouco da história recente do jovem Brasil republicano.
Acompanhe a íntegra da histórica
entrevista de José Sarney:
Em entrevista ao jornal O Estado de S.
Paulo, o senador José Sarney (PMDB) fala dos primórdios do regime militar
instaurado em 1964.
SÃO PAULO – Trigésimo primeiro
mandatário brasileiro, ele hoje se define quase num rasgo de sinceridade: “Fui
um presidente improvisado, que assumiu para ser deposto”. Mas a morte prematura
de Tancredo Neves, de quem era vice, não só lhe abriu o caminho para chegar ao
Planalto, como jogou nas suas mãos a tarefa (histórica, diga-se) de conduzir os
destinos do País num tempo de total incerteza política, fragilidade
institucional e caos econômico. Nesta entrevista exclusiva, José Sarney, aos 83
anos, repassa o percurso desde o momento em que se posicionou contra João
Goulart – “como ele era apoiador de Vitorino Freire, meu tradicional inimigo
político no Maranhão, então eu era anti-Jango” – até o momento em que se viu
frente a frente com os militares em 1985, garantindo-lhes, já como presidente,
que poderiam retornar aos quartéis, seguros de que a transição democrática
seria feita com eles, e não contra eles.
“Cumpri esse acordo, sem deixar
hipoteca para trás”, pondera. Aliado de primeira hora do regime, conta que teve
momentos difíceis com Costa e Silva e Médici, em contraste com o bom trânsito
com Castelo. E reconhece que sua proximidade com o generalato ajudou na
montagem da candidatura de Tancredo Neves à Presidência: “Eu ainda pude lhe
dizer ‘Tancredo, você não governa sem base militar’”. Ao fim de três horas de
conversa, o senador longevo faz uma confissão à repórter: admite que deveria
ter se despedido da vida pública e ido para casa ao passar a Presidência para
Collor de Mello, em 1990. “Ali eu já tinha cumprido a minha missão. Me
arrependo de ter continuado na política”.
“Cometi
um erro ao voltar à política quando encerrei meu mandato presidencial. De novo,
deveria ter ido para casa, mas daí veio o Collor, com todos aqueles problemas,
e me chamaram de volta. Vejo esse meu retorno com arrependimento. Já havia
encerrado a missão maior, que foi a transição democrática.”
Onde o senhor estava
quando ocorreu o golpe militar, há 50 anos?
JOSÉ SARNEY – Em Brasília. Não sabíamos
bem o que estava acontecendo. Atravessávamos um momento de dificuldades,
insatisfação e agitação pelo País. Eu estava no segundo mandato como deputado e
era membro do diretório nacional da UDN. Havia feito um discurso na Câmara, alertando
que não poderíamos deixar o País marchar para uma ruptura institucional.
Qual era a sua
posição em relação ao presidente João Goulart?
SARNEY – Eu era entrosado no meu
partido, a UDN. E, no Maranhão, Jango apoiava o Vitorino Freire, que era meu
inimigo político. Então, eu tinha uma posição clara naquele momento: era contra
o Jango.
De alguma forma
recebeu sinais do que viria a acontecer ao presidente?
SARNEY – O único contato estreito de
que eu dispunha era o (então governador mineiro) Magalhães Pinto. Liguei e
falei com ele. Perguntei se era verdade que havia movimentação de tropas. Ele
confirmou que os generais Carlos Luiz Guedes e Olympio Mourão Filho estavam se
dirigindo para o Rio. Vi que não era mais possível conter o que estava em marcha
depois que o presidente participara daquele ato de insubordinação dos
sargentos. 1964 foi a última das intervenções salvacionistas implantadas pelos
militares no Brasil, na perspectiva daquilo que o almirante Custódio de Melo
(ministro da Marinha e das Relações Exteriores no governo Floriano Peixoto)
chamava de “a destinação histórica das Forças Armadas” – intervir sempre que as
instituições estivessem em crise. A primeira dessas intervenções veio com a
República, que foi uma questão militar. Outras vieram em 22, 24, 30, 32, 50,
54, 60. A de 64 foi capitaneada pelos mesmos tenentes do passado, já mais
velhos – o Cordeiro de Farias, o Eduardo Gomes, o Costa e Silva, os Geisel.
E em que momento os
militares calcularam que sairiam vitoriosos, em 1964?
SARNEY – Eles tentaram controlar a
situação na renúncia do Jânio Não deu. Só quando atraíram o Castelo Branco para
o movimento deu-se aquele ponto de inflexão que abre a possibilidade da
vitória. E por que foi decisivo atrair o Castelo? Porque era um legalista de
vida inteira, tanto que o Juscelino o convidou para a presidência da Petrobras
e ele recusou dizendo que, como soldado, não poderia nunca ocupar cargo civil.
A adesão do Castelo foi chave.
O que pesou mais: o
contexto mundial ou a atuação do presidente João Goulart?
SARNEY – Temos a obrigação de
contextualizar a paisagem de 1964. Os americanos tinham interesses aqui na
região? Claro que tinham, tanto que governos foram sendo derrubados, um após o
outro. Mas vivíamos a Guerra Fria e estivemos perto de um conflito nuclear com
a crise dos mísseis em Cuba. Também acredito que Jango tenha feito de tudo para
criar uma situação insustentável, porque não é possível entender, com a
distância do tempo, como ele cometeu tantos erros naquele momento.
A que erros o senhor
se refere?
SARNEY – Comparecer a um ato de
rebeldia militar e ainda fazer discurso a favor da sublevação de cabos e
sargentos contra os seus superiores. Justo ele, o comandante em chefe das
Forças Armadas! Foi um erro incontornável. Tanto que o general Amaury Kruel
(ministro da Guerra de Jango), que era amigo dele, disse que não fizesse
aquilo. Jango colocou nos comandos do Exército homens da sua extrema confiança.
E depois colocou em xeque o papel institucional das Forças Armadas. Não dá para
entender. Com habilidade, teria completado o mandato, pois as eleições não
tardariam. E Juscelino seria eleito presidente.
Por que conclui que
1964 terá sido a última intervenção militar salvacionista no Brasil?
SARNEY – Porque fechou-se um longo
ciclo. Antes de 1964, os generais não tinham regras claras de permanência no
Exército. Atuavam como generais chineses, donos de exércitos. O Cordeiro de
Farias tinha o seu, o Teixeira Lott, o dele, os Geisel, também. O Castelo então
limitou a permanência dos oficiais a quatro anos em cada posto. E a 16 anos na
patente. Isso quebrou a espinha dorsal de uma estrutura que produzia facções
internas, verdadeiros partidos políticos. Só o Castelo para fazer aquilo.
Pode-se afirmar que o
regime de 1964 rompeu com o legado varguista?
SARNEY – Getúlio Vargas era homem
formado no positivismo castilhista e borgista do Rio Grande do Sul, o que
explica o perfil autoritário. Quando vem para o Rio, muda de personalidade
Torna-se o Getúlio esperto, ardiloso, e atrai os militares. Só que, finda a 2ª
Guerra, os militares voltaram imbuídos de que o mundo teria de ser outro, a
humanidade deveria atravessar um longo período de paz e haveria de se buscar a
vertente democrática. Getúlio ficou antiquado nesse contexto. Retornou ao poder
em 1951, mas já não sabia lidar com os militares. Perdeu confiança até na
guarda que fazia sua segurança no Catete. Hoje vemos os efeitos da figura do
“pai dos pobres”. O peleguismo sindical atrasou o Brasil. Isso só termina com a
eclosão do sindicalismo de Lula, no ABC. Ali acontece a ruptura com Getúlio
Vargas.
O senhor viu
aprofundarem-se as diferenças entre Castelo Branco e seu sucessor, Costa e
Silva. Como isso foi acontecendo?
SARNEY – O plano do Castelo era
terminar o mandato do Jango com eleições. Já Costa e Silva formou o Alto
Comando Revolucionário e, como oficial mais antigo, deixou claro que não queria
o Castelo. Foi obrigado a aceitar. Uma vez ouvi do Castelo que ele era cobrado
por não enfrentar o Costa e Silva. E ele dizia não querer repetir o que houve
entre Deodoro e Floriano, aquele embate que dividiu as Forças Armadas. Só que o
Castelo foi para o governo e começou a dar trombadas. A mais danosa deu-se
quando Costa e Silva encaminhou o pedido de cassação do JK, à revelia do
presidente.
O senhor participou
da eleição direta para governador, de 1965. E ganhou. Como era a sua relação
com o poder central?
SARNEY – Vou contar um caso. Com três
dias de empossado, o comandante militar no Maranhão me pediu uma audiência e
foi quando conheci a figura do S2, o oficial de informação. Porque o comandante
veio acompanhado do S2. E me entregou um ofício determinando que eu
substituísse dois secretários meus, por serem comunistas. Li o ofício e disse:
‘Olha, comandante, não vou lhe devolver o documento para não ser indelicado.
Mas o senhor entregou-o à pessoa errada. Deveria entregá-lo ao presidente da
República, porque aqui eu fui eleito pelo povo’. A relação era assim.
O senhor correu o
risco da cassação?
SARNEY – Minha administração vivia sob
vigilância. Em 1968, fui o único governador a não cumprimentar Costa e Silva
pelo AI-5. Não passei telegrama a Brasília. Numa reunião, ele comentou, olhando
para mim: ‘Fui aconselhado a cassar alguns governadores, não fiz isso para não
destruir a Federação’. Com Médici, a coisa piorou, porque ele me hostilizava.
Não pisou no Maranhão no meu governo. A estrada que fiz de São Luís a Teresina
foi inaugurada por ele em Teresina. Ou seja, a estrada corre no Maranhão, mas o
Médici inaugurou no Piauí!
Pode-se dizer que o
Senado marcou uma inflexão da sua carreira política?
SARNEY – Sim. Porque cheguei ao Senado
e me liguei ao Sacro Colégio, grupo que se reunia secretamente, com o propósito
de evitar choques entre governo e oposição. Faziam parte do Sacro Colégio
Tancredo, Ulysses, Montoro, Teotônio, Roberto Freire, entre outros, e a coisa
funcionou muito bem, pois evitamos que as crises pudessem levar ao fechamento
do Congresso.
Por que aceitou ser
vice de Tancredo?
SARNEY – Porque não aceitaria a
candidatura do Maluf (pelo PDS) e o movimento para prorrogar o mandato do Figueiredo.
A reação a tudo isso entrou pela porta da minha casa: vi meu filho Zequinha, já
deputado, votar a favor das Diretas-Já. Disse a ele que me orgulhava do voto. E
disse a mim ter chegado a hora de ir para casa – renunciei à presidência do
PDS. Mas aí o Ulysses resolveu namorar comigo e o Aureliano Chaves a me
pressionar. Tancredo, certa noite, mandou um avião me buscar em Brasília, para
jantar na casa do (escritor) Murilo Mendes, em Belo Horizonte. Fui. Murilo e
sua senhora me receberam, Tancredo estava com a dona Risoleta. Enquanto as
mulheres conversavam, os homens tramavam.
O que, exatamente?
SARNEY – Tancredo disse que o vice
teria que ser eu e que esta seria uma das condições para ele deixar o governo
de Minas e concorrer. Reagi. Hesitei. Lá pelas duas da manhã disse que
aceitaria. A partir daí, começamos a articular: construímos uma dissidência
importante, evitamos a eleição do Maluf, a continuidade do Figueiredo e os
militares até aceitavam o Tancredo. Aliás, pude dizer a Tancredo: ‘Não pense
que pode ser presidente sem base militar’.
Suas ligações com os
militares foram decisivas naquele momento?
SARNEY – Ajudaram bastante. Logo
procurei o general Leônidas (Pires Gonçalves, seria o ministro do Exército
apontado por Tancredo e confirmado por Sarney) e ele montou uma resistência no
3.º Exército, no Sul. Procurei o brigadeiro Murilo Santos, que começou a
articular na Aeronáutica. O Tancredo fez algo parecido em Minas, com o general
Bayma Denys, e o Aureliano, com o almirante Maximiniano da Fonseca. Isso foi
fundamental, pois, na noite que o Tancredo caiu doente, o ministro do Exército
do Figueiredo, Walter Pires, ao saber que eu assumiria, ameaçou levantar os
quartéis. Mas estávamos preparados para resistir.
Qual era o seu estado
de espírito ao assumir a Presidência?
SARNEY – Fui o último a crer que
Tancredo morreria. Porque aquilo pesava nos meus ombros. Eu vinha de um Estado
pequeno, mal me preparara para ser o vice, não discuti formação do ministério,
não tinha plano de governo nem equipe, e de repente cai no meu colo a
responsabilidade de fazer a transição. A primeira coisa que pensei: preciso me
legitimar ou serei deposto Tancredo poderia adiar coisas com as quais tinha se
comprometido, até a Constituinte. Mas eu não tinha esse timing. O que fiz?
Legalizei o Partido Comunista, anistiei trabalhadores, fiz eleição direta para
prefeito, até o Ulysses disse que era loucura, enfim, abri os espaços da
liberdade. Depois parti para o plano econômico. E paguei caro: 12 mil greves no
governo.
O senhor se considera
o condutor da transição democrática no Brasil?
SARNEY – Especialistas dizem que
fizemos a melhor transição do continente. Primeiro, não deixei hipoteca
pendurada com os militares. Eles voltaram aos quartéis, certos de que a
transição seria com eles, e não contra eles. Eu lhes dei essa garantia.
Construímos uma Constituição democrática, avançamos no plano econômico, fomos
para o “tudo pelo social”. Com o Plano Cruzado, que considero importantíssimo,
evitei cair na fórmula do FMI e rompemos com a ortodoxia. Depois vieram os
outros planos, com problemas, é verdade, mas, sem eles, não teria havido o
Real, que não tive condição de implantar, embora já o conhecesse. Enfim, um
governo de trepidações, mas exitoso ao criar uma sociedade democrática. Um
governo que terminou com um operário concorrendo à Presidência da República.
Acha que a História
não lhe faz justiça?
SARNEY – Ainda vai fazer. A transição
democrática brasileira se deve ao meu temperamento também, a esse jeito
nordestino de dialogar. Cometi um erro ao voltar à política quando encerrei meu
mandato presidencial. De novo, deveria ter ido para casa, mas daí veio o
Collor, com todos aqueles problemas, e me chamaram de volta. Vejo esse meu
retorno com arrependimento. Já havia encerrado a missão maior, que foi a
transição democrática. E é só o que o País deve a este presidente improvisado,
que assumiu para ser deposto.
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