Ministério Público Federal entra com ação na justiça contra Dicionário Houaiss por avaliar que o seu verbete sobre os ciganos é preconceituoso.
Nas últimas semanas, uma denúncia feita originalmente em 2009 ao Ministério Público Federal em Uberlândia, Minas Gerais, ganhou destaque na imprensa brasileira e até mesmo na estrangeira: os significados atribuídos à palavra "cigano" no conhecido dicionário Houaiss seriam racistas e preconceituosos.
O assunto gerou uma enorme discussão pública e acionou histórias e memórias de perseguição e preconceito contra uma das populações nômades mais tradicionais e antigas do mundo.
A ação do MPF, no entanto, não foi bem recebida entre formadores de opinião e intelectuais, que defenderam o direito do dicionário de registrar os usos históricos da língua, mesmo aqueles que possuem conotação pejorativa.
O polêmico verbete do Houaiss para a palavra "cigano" traz a seguinte definição:
"Cigano adj.
1 - relativo ao ou próprio do povo cigano; zíngaro Adj. s.m.
2 - relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do Ocidente; calom, zíngaro.
3 - p.ext. que ou aquele que tem vida incerta e errante; boêmio.
4 - p.ana. vendedor ambulante de quinquilharias; mascate.
5 - (1899) pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador.
6 - pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina.
7 - que ou o que serve de guia ao rebanho (diz-se de carneiro).
8 - LING m.q. ROMANIETIM fr. cigain (sXV, atual tsigane ou tzigane, estas por infl. Do al. Zigeuner), do gr. biz. athígganos ‘intocável’, nome dado a certo grupo de heréticos da Ásia Menor, que evitava o contato com estranhos, a que os ciganos foram comparados quando de sua irrupção na Europa central; c.p. tur. cigianI/i>, romn, zigan, húng.cigány, it, zingano (a1470, atual zíngaro); f.hist. 1521 cigano, 1540 cigano, 1708 sigano COL bando, cabilda, ciganada, ciganagem, ciganaria, gitanaria, maloca, pandilha HOM cigano (fl.ciganar)".
O Ministério Público entendeu que houve racismo nos itens 5 e 6 do verbete e, por isso, entrou com uma Ação Civil Pública contra a Editora Objetiva, que publica o dicionário, e contra o Instituto Antônio Houaiss.
O MPF espera conseguir na justiça uma indenização de 200 mil reais por dano moral coletivo e a retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição das edições do dicionário que contem as expressões que depreciam os ciganos.
Segundo o procurador que cuida do caso, Cléber Eustáquio, "o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizada como infração penal". Segundo ele, a significação atribuída pelo Houaiss violaria o artigo 20 da Lei 7.716/89, que tipifica o crime de racismo.
O procurador reconheceu a excelência do dicionário, mas fez suas ressalvas:
"Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou, ainda, que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação".
No momento, o dicionário Houaiss retirou de sua versão on-line dois verbetes: "negro" e "cigano".
O assunto é bastante delicado, uma vez que o significado apresentado pelo dicionário está plenamente identificado com a sigla "pej.", de "pejorativo", precedido do ano "1899", o que deixa expresso que estes são apenas outros sentidos que o verbete possui(u) histórica, política, social e culturalmente construídos.
Publicar essa informação contendo as respectivas ressalvas históricas seria "assumir um caráter discriminatório", como afirma o procurador? Negar essa informação do público leitor é o ato mais correto?
O dicionário Houaiss apenas expôs os diferentes sentidos do termo em seus distintos contextos e usos.
A língua é um instrumento cultural e social de integração entre povos, construída e reelaborada historicamente conforme seus usos sociais. Como exemplo, basta examinarmos as constituições brasileiras elaboradas de 1891 até 1988 e veremos a quantidade de termos utilizados que faziam referência a minorias sociais de forma pejorativa aos olhos dos estudiosos do presente.
Ao que parece, negar ou cercear a publicação em um dicionário amplamente conhecido dos significados pejorativos que um verbete adquiriu ao longo do tempo configura-se numa forma de se negar o próprio processo histórico de sua constituição e de seus usos sociais.
Além disso, significa colocar para debaixo do tapete a discussão sobre a existência de uma pretensa "democracia racial" brasileira, na qual o racismo e as práticas discriminatórias e preconceituosas são veladas, escondidas, e quando vêm à tona são logo demovidas para o plano do silêncio e da não-discussão pública sobre o assunto.
Como se vê, fiel leitor, essa polêmica ainda vai dar muito o que falar.
Hugo Freitas
Publicar essa informação contendo as respectivas ressalvas históricas seria "assumir um caráter discriminatório", como afirma o procurador? Negar essa informação do público leitor é o ato mais correto?
O dicionário Houaiss apenas expôs os diferentes sentidos do termo em seus distintos contextos e usos.
A língua é um instrumento cultural e social de integração entre povos, construída e reelaborada historicamente conforme seus usos sociais. Como exemplo, basta examinarmos as constituições brasileiras elaboradas de 1891 até 1988 e veremos a quantidade de termos utilizados que faziam referência a minorias sociais de forma pejorativa aos olhos dos estudiosos do presente.
Ao que parece, negar ou cercear a publicação em um dicionário amplamente conhecido dos significados pejorativos que um verbete adquiriu ao longo do tempo configura-se numa forma de se negar o próprio processo histórico de sua constituição e de seus usos sociais.
Além disso, significa colocar para debaixo do tapete a discussão sobre a existência de uma pretensa "democracia racial" brasileira, na qual o racismo e as práticas discriminatórias e preconceituosas são veladas, escondidas, e quando vêm à tona são logo demovidas para o plano do silêncio e da não-discussão pública sobre o assunto.
Como se vê, fiel leitor, essa polêmica ainda vai dar muito o que falar.
Hugo Freitas
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