Mais de um milhão de pessoas protestam nas ruas do Rio de Janeiro, no histórico dia 17 de junho de 2013
Por Hugo Freitas
Historiador e Sociólogo
Os acontecimentos convulsivos dos
últimos dias, pipocados em boa parte das cidades brasileiras, incluindo-se as
26 capitais e o Distrito Federal, certamente irrompem na histórica política do
país como um dos mais contumazes movimentos de mobilização popular dos últimos
tempos.
A força dos protestos que tomou as ruas
de São Paulo contra o aumento das tarifas do transporte coletivo se espraiou
para todo o Brasil após a PM paulista demonstrar através das bombas de efeito
“imoral”, dos gases fatais lacrimogêneos e das balas de borracha que sangraram
os jovens manifestantes o despreparo e a intolerância com que as forças armadas
nacionais enfrentam situações de “desordem pública” contra pessoas desarmadas,
que têm apenas nas vozes e nos cartazes o poder simbólico para reivindicar
melhorias e demonstrar sua insatisfação perante os governos (municipais,
estaduais e federal).
Se o Movimento Passe Livre (MPL) deu o
start para se discutir a questão dos aumentos abusivos sobre os péssimos
serviços de transporte público em São Paulo, a mídia tradicional e a polícia
getulista paulista, contraditoriamente, insuflaram nas mentes e corações da
juventude brasileira, espalhadas pelas cinco regiões do país, o combustível
necessário para se aglutinar em torno de uma agenda comum a insatisfação geral
da população: melhorias na saúde, educação, gastos públicos com grandes eventos
esportivos (Copa das Confederações, Copa do Mundo e Olimpíadas), corrupção, e outras mais específicas,
como o movimento contra a PEC 37, que limita os poderes de investigação do
Ministério Público, além de um longo etc.
Inicialmente, a mídia tradicional,
vinculada aos grandes conglomerados comunicacionais, aos empresários e à classe
política dominante, interpretou o movimento das ruas paulistas como ações de
“vândalos” e “baderneiros” que “choravam” por causa de míseros vinte centavos
de aumento nas passagens, noticiando e defendendo, disfarçadamente, a ação
truculenta da polícia, numa ode à manutenção da ordem. Não concebia, até então,
o alcance de tal estratégia noticiosa, que gerou efeitos não postulados
aprioristicamente.
Posteriormente, quando a mobilização
popular saltou de 5 mil do dia 13 de junho para mais de 100 mil pessoas, no já
histórico 17 de junho, a mesma imprensa aliançada e patrocinada pelo grande
capital traduziu o poder das ruas como ato cívico e exemplo de participação
democrática.
Foi uma tentativa desesperada de não
cair ainda mais no descrédito popular (pelo menos entre a “nova” classe média
brasileira, sufocada com a alta carga tributária que lhe pesa sobre os ombros,
e o universo libertário das universidades) e de tentar surfar na onda do ibope advindo dos protestos,
que agora tinham dimensões de "levante nacional".
Curioso é observar que o único fator
homogeneizador dos manifestantes era o uso indiscriminado das redes sociais
como elemento de convocação e agendamento dos protestos, já que as pautas e as contestações eram múltiplas e variadas.
Os mesmos jovens que,
até bem pouco tempo, eram apontados por muitos teóricos como uma geração
desinteressada da política, uma plateia que se interessava apenas pelas
novidades tecnológicas e que passava horas e horas nas redes sociais,
demonstrando pouco interesse pelos rumos do país.
Talvez, isso justifique a análise
entusiasmada e até mesmo apressada de muitos que devotaram algum esforço
intelectual para interpretar e comparar essa mobilização brasileira com a
chamada “Primavera Árabe”, movimento que teve ampla utilização da internet para
divulgação e conclamação de passeatas e protestos em diversos países árabes.
Porém, as semelhanças param por aqui.
Nada mais estapafúrdio e talhado com
arroubos de intelectualidade comparar o Brasil aos países do outro lado do
Atlântico, uma vez que tais teorizações traduzem o fenômeno social brasileiro
com as mesmas tintas que pincelaram a queda de “ditadores” ou “ditaduras” no
Oriente Médio, fato que não ocorre por estas bandas desde a reabertura política e o fim da Ditadura Militar (1985).
Isso revela também certa letargia dos
intelectuais brasileiros em pensar e explicar o momento político do país
contemplando suas próprias especificidades, sem a necessidade de comparações
com situações exógenas.
Se for para traçar paralelos dos dias
atuais com os de outrora, a história do Brasil é pródiga em nos oferecer
exemplos prenhes de elementos que permitam traduções mais frutíferas.
Mobilizações no país não são novidade. Até um presidente, eleito pelas vias
legais, foi deposto após uma grande mobilização popular, a “Marcha da Família
com Deus pela Liberdade”, que ajudou a derrubar Jango e a conduzir os militares
golpistas de 1964 ao poder.
Depois da experiência do Estado de
exceção, que durante 21 longos anos regeu as rédeas da política brasileira,
tomadas de assalto pelas forças das classes conservadoras burguesas, setores da Igreja
Católica, do empresariado e dos industriais brasileiros, além do capital
estrangeiro, o Brasil foi às ruas pedir as “Diretas Já” e o “Impeachment de
Collor”.
Mas em ambos os movimentos, o povo
serviu apenas como mera massa de manobra, tendo nos partidos políticos e nas
classes elitistas do país o protagonismo das ações políticas de então.
O que se vê, nos dias atuais, é
justamente a negação dos partidos políticos, ou melhor, a tentativa de
impedi-los de participar das mobilizações e dos protestos, exemplificado na
queima de bandeiras do PSTU, do PSOL, do PCO, e até mesmo do PT, taxados pela
grande massa de “oportunistas”.
A ação dos manifestantes de hoje coloca
em xeque a representatividade política do país. A alegação geral é que os
partidos “não os representam”, pois estas instituições estariam impregnadas da lógica do
“poder pelo poder”, da mera disputa por cargos políticos, ainda fiéis depositários da lógica da "República Velha", representante das antigas alianças com as classes dominantes das urbes e com os grandes latifundiários do campo, constituindo-se, portanto, em “partidos de mentirinha”, como bem
salientou o presidente do STF, Joaquim Barbosa, expressando o abismo existente
entre os partidos e os anseios populares.
De fato, ficou provado que o poder das
ruas pode produzir efeitos imediatos, sem a necessidade de mediadores ou
representantes eleitos. As tarifas do transporte público em diversas cidades
baixaram. Em São Paulo, as passagens recuaram para os R$ 3,00 de onde haviam
saltado. O prefeito Fernando Haddad, que nos primeiros dias dos protestos havia
sido implacável na determinação de manter as passagens em R$ 3,20, foi obrigado
a recuar e a estabelecer canais de diálogo com os líderes das manifestações.
Até a presidente Dilma Rousseff se viu
obrigada a fazer um pronunciamento à nação, em rádio e TV, para dar um
posicionamento do governo federal sobre as reivindicações vindas das ruas.
Mas no país do futebol, que respira o
ar inebriante da Copa do Mundo e das Olimpíadas, o efeito anestésico que o
esporte propicia não teve o vigor necessário para ludibriar mais uma vez a
população. O povo brasileiro foi às ruas, até em dias de jogo da seleção nesta
Copa das Confederações, para protestar e cobrar políticas públicas mais
eficazes, para criticar os gastos do governo com os eventos e para exigir saúde
e educação nos mesmos padrões cobrados pela FIFA para a construção dos
estádios.
O protagonismo das ruas é a prova mais
consistente de que política não se faz somente de quatro em quatro anos; que o
voto não é o único instrumento de decisão política; e que os partidos
políticos, principalmente os maiores e mais consolidados (como PT, PMDB e
PSDB), não são o caminho solitário para o desaguamento da insatisfação do povo. Aliás, se aponta mesmo para um processo de reflexão e de readaptação dos partidos às novas demandas sociais.
Se foi possível derrubar tarifas e
forçar um posicionamento da presidente sobre as reivindicações pleiteadas
apenas com a voz e o poder da manifestação popular, é sinal de que a máxima
contida no filme “V de Vingança”, popularizado nas máscaras de Guy Fawkes
espalhadas país afora nos rostos dos milhares de jovens seduzidos pela película
hollywoodiana, tem lá o seu valor: “O povo jamais deve temer seu governo, e sim, o
governo é que deve temer o seu povo”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Grato pela participação.